“Dai-me coragem para mudar o que posso, serenidade para
aceitar o que não posso mudar e sabedoria para perceber a diferença.” A
conhecida prece mostra com bastante simplicidade o quanto a capacidade de fazer
bons julgamentos é valorizada. Mas seria a sabedoria uma dádiva ou algo que se
desenvolve com o tempo?
Para o neuropsicólogo russo-americano Elkhonon Goldberg, a
sabedoria é uma forma de processamento mental muito avançada, que atinge seu
auge apenas na velhice – justamente a época em que a capacidade do nosso
cérebro começa a diminuir. Esses dois processos aparentemente contraditórios
são o tema central do livro The Wisdom Paradox (“O Paradoxo da Sabedoria”, sem
tradução para o português), publicado em 2014. “A velhice é sempre vista como
uma época de declínio, mas ela pode trazer novas habilidades muito poderosas”,
diz Goldberg.
Mas o que é a sabedoria, afinal de contas? Os dicionários
dizem que é a qualidade de ter experiência, conhecimento e capacidade de fazer
bons julgamentos. Goldberg prefere uma descrição mais prática. “É a capacidade
de ‘saber’ a solução de um problema complicado ou inesperado de maneira
praticamente instantânea e sem esforço mental. É também a capacidade de
conseguir antecipar eventos que costumam pegar as pessoas desprevenidas.” Mais
do que simplesmente reconhecer uma situação de crise, por exemplo, o mecanismo
da sabedoria permite enxergar formas de resolvê-la. Mesmo que a pessoa nunca
tenha atravessado por algo igual.
A chave para esse processo, segundo Goldberg, é a nossa
capacidade de identificar padrões. Ao ver uma cadeira, por exemplo, somos
capazes de identificar que aquilo é uma cadeira, sem precisar ter visto todos
os tipos e modelos que existem no mundo. Isso é possível porque criamos um
modelo mental da cadeira genérica, com todas as suas características comuns, e
que é ativado quando vemos algum objeto que se encaixa na descrição. Isso funciona
também com situações e na resolução de problemas. “Se não fosse por essa
capacidade, cada objeto e cada situação que encontrássemos durante a vida seria
tratado como uma coisa totalmente nova, e seríamos incapazes de usar nossas
experiências anteriores”, diz o neuropsicólogo.
A habilidade de reconhecer semelhanças entre problemas aparentemente
novos e outros já resolvidos é o que Goldberg define como competência.
Quanto maior o número de experiências e padrões acumulados
por uma pessoa competente, maior a sua experiência num determinado campo. É por
isso que um médico com vários anos de trabalho acumulados consegue resolver
problemas melhor do que um recém-formado – apesar de o treinamento de ambos
serem muito semelhantes. Todos nós, em maior ou menor grau, possuímos
competência e conseguimos acumular experiência, diz Goldberg. “Já a sabedoria é
vista como a versão mais avançada dessas habilidades e exige uma forte mente
analítica e uma biblioteca de padrões bastante abrangente.”
À medida que as relações entre os diversos padrões vão sendo
processadas pelo cérebro, elas vão formando redes de neurônios que Goldberg
chama de “atratoras”. São “circuitos” de memórias relacionadas e que contam com
diversas maneiras de ser ativados. Quando você vê o rosto de uma pessoa, ativa
a rede atratora que relaciona várias outras coisas que você sabe sobre ela. A
sabedoria, então, seria consequência de uma grande quantidade de redes
atratoras no cérebro da pessoa. E tanto elas quanto os padrões levam tempo para
serem acumulados em quantidade suficiente para resolver problemas de maneira
rápida e eficiente. “Por causa disso, o envelhecimento acaba sendo o preço da
sabedoria”, resume Goldberg.
Arquivo vivo
A relação entre sabedoria e envelhecimento não tem a ver
somente com o acúmulo de experiências, segundo Goldberg. Outro fator importante
são as mudanças que ocorrem na forma como o cérebro lida com informações. O
lado direito (esquerdo, no caso dos canhotos), responsável pelo processamento
de informações novas, costuma sentir os efeitos do envelhecimento antes do lado
esquerdo, onde se concentra boa parte da nossa memória de longo prazo.
Na prática, a experiência e a sabedoria acabam conseguindo
compensar parcialmente essa perda, diz o neuropsicólogo. “Quando somos jovens,
a maior parte do nosso poder de processamento é empregada em tentar entender o
mundo e as situações com as quais nos confrontamos”, explica ele. “Esse poder
diminui com a idade. Em contrapartida, a maioria dos problemas que surgem pode
ser resolvida com base na comparação com os padrões que foram acumulados. Isso
demanda muito menos trabalho do nosso cérebro do que tentar entender uma
situação completamente nova.”
A forma como a memória começa a falhar com a idade também
tem um papel importante. Padrões, como as características em comum das cadeiras
ou de problemas conhecidos, são muito mais resistentes ao tempo do que dados
isolados – por exemplo, a informação de que Pequim é a capital da China. Por
fim, o início do declínio mental costuma coincidir com a aposentadoria, época
em que os desafios do dia a dia diminuem
consideravelmente.
A história traz importantes exemplos de como essas
capacidades analíticas conseguem sobreviver ao tempo e, inclusive, ao início de
demências. O ex-presidente americano Ronald Reagan começou a apresentar os
primeiros sinais do mal de Alzheimer enquanto ainda estava na Casa Branca.
Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a Segunda Guerra
Mundial, teve diversos lapsos mentais e alguns derrames durante seus dois mandatos.
Joseph Stalin, que comandou a ex-União Soviética por décadas até sua morte, em
1953, passou a ter diversas dificuldades de linguagem em seus últimos anos.
Também há indícios de que o ditador nazista Adolph Hitler tenha começado a
apresentar sinais de demências menores. O ponto comum entre essas personagens,
diz Goldberg, é que, apesar desses problemas, todos eles ainda foram capazes de
liderar seus países até praticamente a morte. “Sim, eles tinham muitos e muitos
assessores para compensar as dificuldades. Mas em nenhum momento eles foram
marionetes. Sempre estiveram no comando”, diz o neuropsicólogo.
Eram todos eles sábios? “Provavelmente não. Mas todos
acumularam muitos padrões e experiências e exibiram muita competência e
experiência, que serviram para levar adiante seus bons ou maus propósitos”, diz
Goldberg. “Todos eles são exemplos de como o mecanismo de reconhecimento de
padrões é poderoso e consegue compensar até certo ponto diversos outros
problemas cognitivos.”
Somando tudo isso, fica fácil perceber que, na prática, a
sabedoria trata-se mais de uma troca do que de uma supercapacidade. E é dessa
forma que ela precisa ser encarada, diz Goldberg. Em outras palavras, não como
o ápice do nosso processamento mental, mas como um mecanismo biológico para compensar
a queda de capacidades como a concentração e a aquisição de novos
conhecimentos. “Ela tem um efeito bastante considerável, mas é finito e apenas
diminuiu o ritmo do nosso declínio mental, que é inevitável”, afirma Goldberg.
Experiência acumulada
Apesar de inevitável, o declínio mental é gradual em pessoas
que não têm doenças degenerativas, com o mal de Alzheimer. Isso significa que é
possível aproveitar bem as vantagens que a sabedoria traz. “Há diversas tarefas
mentais nas quais os idosos têm resultados
tão bons quanto os de pessoas mais jovens”, diz a neuropsicóloga Jacqueline
Abrisqueta-Gomez, do Hospital São Paulo. Basta não considerar o tempo gasto, o
que nos idosos tende a ser maior. “Grandes empresas multinacionais costumam
entregar o comando para profissionais na faixa dos 50 anos, que estão num ponto
de equilíbrio entre velocidade de processamento e experiência acumulada”, diz a
médica.
Há também aqueles que atingiram o ponto alto de suas
capacidades exatamente na velhice. Entre os exemplos, Goldberg cita o escritor
alemão Goethe. Ele escreveu o primeiro volume de sua obra-prima, Fausto, aos 59
anos, e a segunda aos 83. “Goethe escreveu muitos livros durante sua vida, mas
foi justamente a obra produzida na velhice que se tornou sinônimo de seu nome
através dos séculos.” Outro exemplo citado é o do arquiteto espanhol Antoni
Gaudí, que morreu num acidente aos 74 anos, no auge de sua capacidade criativa.
No fundo, talvez seja a experiência e a sabedoria que nos
permitam viver 60, 70, 80 ou mais anos. “Somos uma das poucas espécies cuja
vida vai além do período reprodutivo”, diz Goldberg. Qual seria a importância
de um indivíduo que, do ponto de vista biológico, não tem mais nada para
contribuir para a perpetuação da sua espécie? “Uma possibilidade é que os mais
velhos contribuam de uma maneira crítica para a sobrevivência da espécie por
outros meios – particularmente na transmissão do seu conhecimento acumulado
para as gerações mais novas, por meios culturais, como a linguagem”, acredita o
pesquisador.
Assim como nem todos os idosos apresentam demências graves,
nem todos atingirão a sabedoria. Embora o potencial de certas pessoas seja
maior que o de outras, é preciso desenvolvê-lo. “Expor-se constantemente a
novos desafios mentais é um ingrediente muito importante”, diz Goldberg. Sem o
acúmulo de experiências que alimentam a biblioteca de padrões, mesmo a mais
analítica das mentes não conseguiria chegar à sabedoria. A sabedoria, escreveu
o filósofo grego Sócrates, começa com a vontade de saber.